Anteriormente tratamos do significado da palavra personalidade fazendo um um paralelo com a questão identitária do sujeito. A partir do presente tópico enfatizaremos o conceito de pessoa em Rogers, começando pelo termo utilizado por ele denominado congruência:
Congruência significa harmonia de uma coisa ou fato com o fim a que se propõe, coerência, propriedade, conveniência. Autenticidade é qualidade do que é autêntico. E autêntico é o mesmo que veraz, verdadeiro, certo, genuíno, legalizado (RUDIO, 2003, p. 63).
Ser autêntico, no entanto, não é fácil. Exige de nós um desprendimento e uma liberdade interior muito grande e que nos matenha longe de paradigmas de como definir ou utilizar a palavra autenticidade, banalizando, assim, o significado real do que realmente é ser autêntico.
Congruência e autenticidade são classificados como sinônimos, embora haja diferenças. Ambos conceitos em Rogers, têm a finalidade de mostrar como a pessoa verdadeiramente é, mas especificamente a congruência depende de uma manifestação.
Segundo (HANNOUN, 1980, p. 60) a autenticidade em Rogers, implica “sermos nós próprios, é instalarmo-nos no que ele chama The good life”, o que Pagès, seu tradutor francês, traduziu por vida plena.
Ser quem se é para Rogers é desprender-se de viver sob uma lógica que o outro nos impõem. Este, no entanto, não é só pessoa física, mas a sociedade e seus interesses, o sistema e suas ideologias e/ou qualquer movimento que venha nos roubar de nós mesmos.
Esta autenticidade é, pois, exigência de espontaneidade. Toda a censura – consciente ou não – é recusada, com o temor de vermos instalar-se em nós o dualismo que dividiria o permitido e o proibido, o confessável e o oculto, o que é apenas para nós e o que pode ser para os outros, etc… Melhor: ela torna-se condição primeira de conhecimento, ou, mais precisamente, da experiência dos outros. É porque consigo ser autenticamente o que sou que a minha atitude iniciará o outro a dar provas da mesma autenticidade e, assim, estabelecer-se-á entre o outro e mim um contacto real das personalidades verdadeiras (HANNOUN, 1980, p. 61).
A sociedade contemporânea vive um dilema existencial entre o que sente verdadeiramente, incluindo desejos, vontades, necessidades e sonhos, com aquilo que o mundo externo propõe, ou seja, um padrão comportamental, que dita regras e normas implícita e explicitamente, onde ‘vende’ um jeito de viver e ser, em prol da felicidade.
Isto invade nossas casas, muitas vezes de maneira perversa, agressiva, até mesmo sutil, sequestrando de alguma forma a subjetividade, tornando as pessoas confusas, angustiadas, perdidas, sem saber ao certo seu rumo.
A perversidade maior é que isto ocorre na fragilidade humana, pois só acontece caso a pessoa autorize o mesmo a se tornar concreto. Se você se conhece, sabe de seus limites e potencialidades, saberá conduzir melhor as situações que terão essas provas.
De acordo com Rudio (2003, p. 66), “[…] a autenticidade consiste nisso: a aceitação e vivência da própria verdade ontológica. Chegar nesta verdade de cada um, é o projeto da existência humana e quem saberá dar um destino, somente a própria pessoa”.
Rogers, ressalta que ao utilizar o termo congruência procurou estabelecer “[…] uma correspondência mais adequada entre a experiência e a consciência. Pode ainda ser ampliado de modo a abranger a adequação entre a experiência, a consciência e a comunicação” (Rogers, 2009, p. 392).
Dentro desta visão rogeriana, a experiência seria tudo aquilo que ocorre e sentimos em nosso organismo, sendo estas emoções positivas ou não. A consciência, por outro lado, é a maneira com que internalizamos o que sentimos, ou seja, qual é a representação que temos da experiência que sentimos de uma determinada situação.
Num terceiro nível, a comunicação é a forma com que manifestamos o que experienciamos a nível intelectual, afetivo e vivencial.
Quando não ocorre uma espécie de simbiose entre esses três níveis: acontece o que Rogers denomina como incongruência, ou seja uma manifestação incoerente das ações práticas da pessoa, com relação ao que sente no organismo, representado na consciência e comunicado ou manifestado concretamente em atos.
Rogers (1983, p. 48) diz: “[…] a incongruência é definida como um estado (geralmente desassossegado) em que existe uma discrepância entre o eu, tal como é percebido, e a experiência presente do organismo total (tudo que é potencialmente disponível à consciência, que está ocorrendo no organismo em um dado momento)”.
A discrepância seria a incoerência de sentir algo, rejeitá-lo, fingindo que não aconteceu e manifestar este afeto irresponsavelmente, descompromissado com quem você é. Um exemplo de incongruência mencionado por Rogers é o seguinte:
Citemos o exemplo fácil de identificar do homem que se exalta numa discussão de grupo. O rosto congestiona-se, o tom de voz traduz a irritação, com o dedo ameaça o opositor. Contudo, se um amigo lhe diz: “Ora, não, te exaltes por causa disso,” ele responde com uma sinceridade e uma surpresa evidentes: “Mas eu não estou exaltado! Não me sinto nada irritado. Limito-me a salientar os fatos lógicos!” Os outros membros do grupo riem dessa declaração. Que é que acontece nesse caso? Parece evidente que, num nível fisiológico, esse indivíduo vivencia irritação. Essa experiência de irritação não é captada pela consciência. Conscientemente, ele não está irritado, nem comunica sua irritação (pelo menos com consciência). Aqui está uma real incongruência entre a experiência e a consciência e entre a experiência e a comunicação (ROGERS, 2009, p. 393).
Este exemplo é um entre vários que acontecem no nosso cotidiano e são difíceis de serem administrados por um sujeito que esteja em desarmonia afetiva consigo e com o outro. E quando acontecem, fica evidente que serão manifestados de forma errônea, desconexas com a realidade.
Inevitável é deixar de sentir a experiência, o que pode ocorrer é a omissão, distorção da realidade sentida, consequentemente comunicar esta elaboração de forma contrária, numa linguagem diferente a da própria pessoa.
Imaginemos o exemplo dado por Rogers:
Havia um piloto, que era conhecido como pessoa valente e sem medo. Numa ocasião, mandaram-lhe fazer uma viagem que implicava grandes riscos. O seu organismo sente a experiência do medo e a necessidade de livrar-se do perigo. Entretanto, essa experiência não pode ser representada corretamente na consciência porque se opõe ao conceito que o piloto faz de si, de um homem valente e sem medo. Então, a experiência impedida de representação se “transforma” e assume uma feição psicossomática. Chega à consciência numa simbolização incorreta, distorcida, como “distúrbio do aparelho digestivo”. O piloto diz o que representou: “Não posso fazer a viagem porque estou adoentado”. E, assim, foge do perigo que temia, mantendo a imagem de ser um indivíduo valente e sem medo. Podemos supor, no caso que acabamos de apresentar, que o sentimento ameaçador do medo foi reconhecido e impedido de entrar na consciência, sem que em nenhum instante o piloto tivesse consciência do referido sentimento. No exemplo dado, podemos considerar três níveis diferentes no piloto: o da experiência organísmica (o medo que sentiu e o desejo de fugir do perigo) o da representação na consciência (o distúrbio do aparelho digestivo) e a comunicação feita (“não posso viajar porque estou adoentado”). No caso apresentado, há congruência (porque existe acordo) entre a comunicação e a representação na consciência. Mas não existe congruência entre experiência e representação na consciência. Fala-se em comportamento congruente para indicar a harmonia, a integração entre os três níveis: experiência-consciência-comunicação. Isso unifica a pessoa: o que ela experimenta, representa. O que representa, comunica (RUDIO, 2003, p. 91-92).
No exemplo do piloto existe um auto conceito de sua parte, de homem valente, guerreiro, corajoso. Esta é a imagem que ele tem de si e que ao mesmo tempo transmite para outras pessoas. Se não fosse assim seria um risco assumir tal fragilidade sentida aos olhos do outro e de si mesmo, pois o receio de não ser aceito permanece vivo.
A consequência disso é a distorção, omissão, o disfarce dos fatos perante à consciência, rejeitando-a porque assim lhe dá uma ilusão de segurança. Isto acarretou o que ele justificou como “distúrbio do aparelho digestivo”. Assim, conseguia explicar sua impossibilidade de viajar, ainda que isto não correspondesse à verdade.
Aceitar a experiência frágil, para adequadamente encontrar saídas favoráveis, de acordo com a manifestação dos afetos sentidos, elaborar na vida prática, transformando em ato este sentimento é uma questão de congruência. Neste caso, especificamente seria o piloto assumir na consciência que organicamente sentiu medo.
Para se chegar a isto, no entanto, é necessário se reconhecer enquanto pessoa sem fingimentos e canalizar esta energia vital, em prol da libertação dos afetos, aceitando-se como um ser limitado, porém, com potencial de crescimento e amadurecimento afetivo. Ser pessoa em Rogers, portanto, é ser congruente, é ser quem realmente se é, livre de preocupação em viver uma ótica que não seja a de si mesmo gerando autenticidade em quem chega, assim, afetando a coletividade.
REFERÊNCIAS
HANNOUN, Hubert. A atitude não-directiva de Carl Rogers. 1ª Ed. Lisboa: Ed. Livros Horizonte, 1980.
ROGERS, Carl R. et al. WOOD, John K. et al O’HARA, Maureen Miller. et al. FONSECA, Afonso Henrique L. da. Em Busca de Vida: da terapia centrada no cliente à abordagem centrada na pessoa. São Paulo: Summus, 1983.
ROGERS, Carl R. Tornar-se Pessoa. 6ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
RUDIO, Franz Victor. Orientação Não-Diretiva: na educação, no aconselhamento e na psicoterapia. 14ª Ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003.